Sob intensa pressão por mais gastos públicos — provocada pelos efeitos socioeconômicos da pandemia de Covid-19 e pela perda de competitividade eleitoral do governo — o ministro da Economia, Paulo Guedes, primeiro anunciou que um “meteoro fiscal” de cerca de R$ 90 bilhões em dívidas judiciais (precatórios) se aproximava do Executivo. Em seguida, perdeu a disputa interna sobre a flexibilização do Teto de Gastos para viabilizar o Auxílio Brasil, programa que sucedeu o auxílio que seria emergencial.
Paralelamente, o Centrão consolidou sua influência sobre o governo, realizando o que se pode chamar de um verdadeiro corporate raid político. Em troca da blindagem contra um possível processo de impeachment — risco crescente diante da impopularidade de Bolsonaro — o bloco ampliou seu controle sobre o orçamento federal. As emendas parlamentares, principal instrumento usado por deputados e senadores para financiar obras e projetos em suas bases eleitorais, atingiram nível recorde: previsão inicial de R$ 48,8 bilhões e execução final de R$ 33,8 bilhões, quase o triplo dos R$ 13 bilhões liberados em 2019, primeiro ano do governo. “A gente está discutindo o ‘meteoro’ dos precatórios, mas a gente tem que lembrar que houve um também neste ano, né?”, comentou à época Carlos Kawall, ex-economista-chefe do Banco Safra e da ASA Investments.
"DO YOU BELIEVE IN LIFE AFTER LOVE?"
Novamente, o Teto de Gastos na mira, levando o mercado financeiro a temer alta do déficit e da dívida pública, com reflexos sobre inflação e juros. Segundo o Congresso em Foco, em 21 de outubro: “A economia segue reagindo muito mal à possibilidade de o governo furar o Teto de Gastos e desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal para conferir um valor de R$ 400 ao Auxílio Brasil (...). O dólar opera em alta e às 10h30 estava cotado em R$ 5,637; no mesmo horário, o Ibovespa caía 1,7%.”.
Em O Globo, também em 21 de outubro: “Após meses de volatilidade no câmbio e na Bolsa na esteira dos riscos fiscais, o mercado derreteu nesta quinta-feira, conforme o rombo no Teto de Gastos se tornou cada vez mais uma realidade. (...) As empresas do Ibovespa acumularam perdas de R$ 284 bilhões em valor de mercado desde o anúncio do Auxílio Brasil de R$ 400”.
No dia seguinte, 22, o portal Seu Dinheiro relatou: “A reação do mercado financeiro ao acordo dentro do governo para aumentar o Teto de Gastos irritou o presidente Jair Bolsonaro. Depois de Paulo Guedes ter jogado a toalha quanto ao cumprimento da regra, o Ibovespa fechou em queda de 2,75%, o dólar avançou 2,16%, a R$ 5,6676, e as taxas de juros futuros dispararam. Insistindo que o Auxílio Brasil seria pago dentro do Teto, Bolsonaro usou sua live semanal para anunciar um benefício aos caminhoneiros e reclamar que o mercado fica ‘nervosinho’ com as medidas anunciadas por ele” .
CONTEXTO PRÉ-FARIA LULER
Até a declaração oficial da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020, a relação entre Bolsonaro e o mercado era de “lua de mel”. Os agentes econômicos apostavam nas promessas de Guedes: zerar o déficit fiscal, arrecadar R$ 1 trilhão com a venda de imóveis da União, privatizar estatais de grande porte — como Eletrobras, Correios, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e até a Petrobras —, aprovar as reformas previdenciária, administrativa e tributária, além dos novos marcos regulatórios do saneamento, gás, ferrovias, cabotagem e câmbio, preservando o Teto de Gastos, a reforma trabalhista e a dolarização dos combustíveis.
Entretanto, a crise econômica causada pela Covid-19 impôs ao Estado a necessidade de adotar políticas de estímulo e ampliação de gastos, reabrindo o debate sobre o papel do setor público na economia. A integridade das regras fiscais, a pressão social por respostas e os interesses eleitorais do governo e de sua base parlamentar tornaram-se inconciliáveis. Estava posta uma contradição fundamental: austeridade vs. pandemia e eleição. Seu aspecto principal, o embate entre Guedes e Centrão, estava maduro para ser explorado pela candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva.
O mercado sofreu uma derrota estratégica. Mesmo antes das urnas, já havia perdido o objetivo de manter um governo alinhado à Faria Lima para concluir sua agenda “padrão Escola de Chicago”. Formou-se um novo consenso político nacional que rejeitava a austeridade e a primazia do setor privado como respostas preferenciais do sistema político.
